Que animal é esse, o homem?


A inteligência que nos concebeu, tem certamente um propósito determinado para nosso aperfeiçoamento. Era somente o grande laboratório da vida formado pelos oceanos. As ondas rolavam sobre as pedras, impregnando de espuma fértil toda a superfície porosa. A maré refluía, cumprindo seu ciclo de baixa-mar, deixando a espuma exposta ao sol. Vinha a preamar e suas águas enriqueciam a solução, dando à luz mais espuma fresca fertilizada pelos sais, resíduos e detritos dos elementos que as chuvas arrastavam para o mar, onde recebiam a poeira trazida pelos ventos e, ao ritmo cadenciado das ondas, dançavam o ballet pré-natal. Esse perene exercício repetitivo teria assumido tão amplo probabilismo, que viabilizou o surgimento dos primordiais compostos orgânicos que estruturaram a primeira amostra de vida unicelular. Veio a bi, a tri, a multicelular.
A mãe consciência curvada sobre o grande laboratório, organizou as células, definindo as formas, os gêneros e as espécies. É a vida em profusão. Todas as formas foram concebidas e postas à prova contra as adversidades do meio ambiente. Muitas espécies, constituídas de miríades de seres vivos, tiveram existência muito breve. Foram tantas as criaturas experimentais já extintas, que seus compostos orgânicos constituíram as imensas jazidas subterrâneas de petróleo que os homens tão ávidamente exploram até hoje.
Satisfeita com a imensa variedade das espécies, a natureza volta toda sua atenção para o desenvolvimento de sua criação. O grande laboratório é transformado no imenso celeiro. À semelhança do navio, somos expostos ao rigor de todos os mares. São as águas agitadas e contrárias à nossa marcha, que modelam nossa “proa”; elas castigam o casco disforme mal concebido, maltratam e perseguem-no até que se evidencie a necessidade de mudar, alongar, afilar e adequar-se para singrar em adversidade harmônica. Quando o navio está perfeito, a passagem do temporal mais se assemelha à cadência da dança, que ao fragor da guerra. Não fosse a ameaça das águas revoltas, quem teria aperfeiçoado o navio? Para a comodidade das águas mansas, bastaria uma reles barcaça sempre atormentada pela probabilidade do temporal.
Do verme à ave, longo foi o caminho da evolução. O pé teve que ser concebido, desenvolvido e rigorosamente aprimorado, antes de ser superado pela asa. A participação passiva das espécies pouco contribuía para acelerar a marcha da evolução, visto que todo processo de adaptação teve que ser imposto, levando-se em conta que os irracionais, só passivamente atuam na luta contra as adversidades surgidas em seus habitats; e só saem do estado de comodidade, quando ameaçados por algum risco.
Os espécimes eram títeres da mãe natureza, que os concebia e os submetia às duras provas. Se não evoluíam, ela mesma os exterminava, visto que sua rigorosa economia, não aponta para a preservação do estado estacionário ou regressivo. Quando não aprovados, cediam lugar às novas concepções, enquanto os que resistiam às primeiras provas, submetiam-se a novos e ainda mais rigorosos ciclos de desenvolvimento. Dessa profusão de passividade, teria surgido o “pinócchio”.
Muitos são os fenômenos mutatórios que ocorrem antes que se evidencie a definição de uma espécie animal. Desde o limiar da formação da família a que pertence a espécie humana, hominídeos australopitecíneos (período paleolítico) até sua definição mais completa, passaram-se mais de um milhão de anos, durante os quais desenvolveu-se uma específica memória genética capaz de garantir hereditariamente a cada indivíduo, os caracteres biológicos, anatômicos e psíquicos de seus ascendentes, possibilitando assim, perpetuar-se os ganhos evolutivos.
O pinócchio pensa, reage e adapta-se às novas condições de vida; descobre, inventa, cria e confecciona ferramentas e armas para assumir a liderança sobre os outros animais. Seu cérebro, dotado de mente, memória e consciência, propicia-lhe rápido progresso intelectual, desenvolvendo e multiplicando seus conhecimentos através de raciocínio empírico-analítico. Em outras palavras; agora a experiência vivida por um animal, é gravada e mantida na memória, para facilitar a resolução de problemas futuros, pois não se trata mais de uma criatura passivamente exposta às experiências de seu CreadorCrear é a manifestação da Essência em forma de existência — criar é a transição de uma existência para outra existência. O poder Infinito é o Creador do Universo — um fazendeiro é um criador de gado., mas, de participação ativa no seu autoaprimoramento. O homem, dotado de mente e podendo raciocinar, assumiu ativamente os encargos evolutivos, superando todas as demais espécies. Ele agora é o mais desenvolvido de todos os animais, mas é ainda um animal.
Esse desvio evolutivo do estado de passividade para a atividade empreendedora não seria suficientemente representativo se a natureza tivesse negado ao homem o exercício da liberdade de agir. Essa emancipação porém, trouxe em seu bojo os riscos inerentes à incontinência dos atos volitivos. São muitos os bem intencionados que procuram vida mais cômoda para a humanidade, como se fossemos o porto à espera do navio. Não compreendem que somos apenas o navio em busca de seu porto; pois nenhum caminho conduz do porto ao navio. É o navio que tem que chegar. Os acomodados não mudam. São eles os papo-cheio que permanecem estacionários, submissos à nossa marcha. São eles os cozinheiros de oásis; os que manobram a comida, mas não acompanham a caravana. São os furtivos catadores de ovos de ninhos desprotegidos. Deixemo-los agir; pois eles não nos pertencem? Não foi apoderando-se dos ovos acessíveis que ensinaram a águia a fazer seu ninho no cume da colina? Mas doem, as mordidas desses cães mansos! Mas que é a dor? Acaso alguém para ou anda devagar quando mordido pelo cão? Não foi a dor que desenvolveu o pé e criou a asa? Que há na humanidade melhor que acelerar sua marcha; que o hábito de morder a si própria? É o leão que ensina a gazela a correr; mas o homem é o leão que aprende a correr, mordendo seu próprio rabo.
Mas se somos o combustível que alimenta a grande fornalha na marcha de aperfeiçoamento da espécie, procuremos então produzir mais calorias e maior temperatura, pois somos também a caldeira e o próprio navio. A matéria carbonizada que atingiu o estado de pureza do diamante, não foi sacrificada pelo fogo. Agir sem alarde, sem ostentação, sem vaidade, sem sede de reconhecimento; ser combustível do fogo sem chama e sem plateia, que submerso e silencioso carboniza a matéria. Quanto mais profunda e silenciosa é a combustão, maior a temperatura e a pressão que purificam o carvão na formação do diamante.
Quanta diferença de uma crepitante e aquecedora, brilhante e festiva fogueira junina, para o misterioso fogo submerso dos carvoeiros que abastecem as cidades. Na fogueira o fogo se manifesta em todos os seus caracteres através da chama viva. Essa manifestação é o resultado do sacrifício do combustível que o alimenta. Após a combustão, fica o “nada” em forma de cinza; a matéria é consumida em tributo pelo fogo que se apresenta. 
Na transformação da madeira em carvão o fogo não aparece, não faz a festa, não se exibe, apenas presta seu serviço. Os carvoeiros abrem grandes valas na terra arenosa, forram com folhas verdes, depositam a madeira, cobrem com folhas e fecham a vala com a terra removida, deixando uma pequena abertura por onde põem o fogo que agirá sem chama, oculto e silencioso, queimando todo o hidrogênio da madeira, deixando-a com a forma e o volume anteriores, com coloração negra, consistência frágil, baixa densidade e facilidade de combustão ao ar livre. É o carvão vegetal tão conhecido e tão útil. Se essa combustão tivesse ocorrido em maior profundidade, a pressão e a temperatura seriam maiores e o fogo elevaria o carvão à pureza do diamante, pois teria agido em silêncio profundo.
Não houvesse o trabalho obstinado e silencioso de alguns, a exemplo os pesquisadores da ciência e da tecnologia, nada haveria além da fanfarra dos políticos e dos legisladores; nenhum progresso. São muitos os que se ocupam em tributar e punir. Controlam a produção, criticam a produção, reclamam a produção, mas seu único produto é o empecilho à produção. Elogiam, criticam, julgam, absolvem, condenam, punem; esse é o seu trabalho produtivo. Fazem questão de farta remuneração, pois dentre os homens, são os que ostentam ou reivindicam as melhores condições de vida, e consideram-se superiores, únicos importantes, propulsores de todo progresso e desenvolvimento. Subestimam os que produzem, vendo-os apenas como obrigados a contribuir sob sua vigilância. Não reconhecem a importância do técnico, do cientista, do industrial, de todos que produzem e pagam porque produzem.
Compreende-se que os homens não se resumem a esses aqui já considerados. Temos o médico, no pacífico e benévolo exercício de sua profissão. Temos a atuação dos educadores. Fora da medicina, do ensino e da produção, há outras instituições que se justificam, desde que cumpram suas finalidades. Se não são parasitas nem produtores, que sejam de policiamento ou de defesa. Sim, mas é necessário policiar não somente os que produzem, mas também os que vivem desses e não o reconhecem o suficiente para estima-los. Seria necessário que a polícia instituída servisse a esses contra as falhas daqueles, no mínimo tanto quanto serve àqueles contra as falhas desses. Mas, devido à natureza universal da instituição policial, a solicitação de seus serviços não se justifica quando do povo contra a autoridade, embora a via inversa nos pareça tão natural.         
Os de defesa só se justificam pela eficiência no desempenho de sua especialidade. São homens de armas, preparados para fazer a guerra em defesa de seu povo. Não disfarçam o fato de serem treinados para matar ou morrer; usam até uniformes que definem sua sinistra finalidade. Estão à disposição do seu povo, sempre prontos a sacrificar-se em sua defesa, pois nunca em toda a história da civilização humana, um exército deixou de cumprir sua finalidade quando chegada a hora. Não negam que portam armas mortíferas e que as erguerão e as usarão se for indispensável. E só quando for indispensável. Assim devem ser os de defesa. E é bom que sejam assim. Temeroso é não poder prever e avaliar o comportamento dos que agem dissimuladamente. Na expressão de Nietzsche: quando não se pode abençoar, é bom que se saiba amaldiçoar com perfeição.
Malditos bem intencionados, abortadores de gênios, que preferem o homem acomodado na condição de animal doméstico, gado da natureza. Para eles, estômago cheio, amigos sorridentes, casa confortável e dinheiro guardado, é a própria felicidade. Não sabem, donos do mundo, que ainda somos o meio e não o fim. Não teríamos sido atentamente desenvolvidos e distinguidos dos outros animais, apenas para sermos relegados à condição de animais superiores; não, não é suficiente superar os animais! Temos que nos superar. Não podemos aceitar que nos ponham a ração no curral e nos protejam dos perigos, e que nos impeçam de desenvolvermo-nos e superarmos nossos riscos. Devemos repelir a comodidade, a proteção e a segurança, pois de outra forma estaríamos aceitando nosso atrofiamento. Pisamos o espinho e criamos o sapato. Pisamos a serpente e descobrimos a erva medicinal. Fomos roubados, criamos a porta. Fomos atacados e tivemos que cavar a terra dura, extrair o minério, submetê-lo ao fogo, martelar o ferro plástico e modelar a arma. Maldito pois, seja o benfeitor que lamenta os sofrimentos do homem, e que pretende protege-lo como a seus animais domésticos. Não sabem que o mesmo verme que corrói as entranhas do homem, torna o homem incorrosível pelo verme ?
Que animal é esse que pode sobreviver a quaisquer condições que lhe imponham as circunstancias? Esse rijo que consegue arrancar a subsistência quebrando pedras, domando feras, suportando altas temperaturas nos fornos das usinas siderúrgicas, cavando as profundas minas subterrâneas, mergulhando ao fundo dos mares, alcançando os picos das montanhas, gravando um poema ou mapeando todo um país sobre a minúscula cabeça de um alfinete; praticando cirurgia e ensinando a dança; dominando os elementos da natureza e usando-os em seus canhões, fazendo-os troar como trovões nas guerras de superação de seus rivais?     
Será apenas um animal, esse que invade os reinos de Deus ou do diabo, sobrevoa as nuvens e pisa o chão da lua? Que bicho é esse, que tendo superado todos os animais, procura superar a si próprio, criando e enviando seus mensageiros eletrônicos para espionarem os planetas tão remotos, podendo falar-lhes e ouvir-lhes de tão longe, ordenando que se erga um braço mecânico, apanhe uma pequena pedra, examine em micro laboratório e envie todos os caracteres geológicos imediatamente para a terra longínqua? Não será algo já muito além do animal?
Próspera humanidade, que tem a seu dispor infinito celeiro de gerações e gerações a serem "sacrificadas" em prol do aperfeiçoamento. Legião de jovens em cada geração, destinados às mais diversas exposições experimentais que sua natureza cognoscente empreende em busca da têmpera do homem. Um sistema de ensino tão bem estruturado, que se estende desde a alfabetização fundamental, à mais rigorosa especialização acadêmica, sem excluir as contingências da fome, doença, opressão, traição, punição, trabalho forçado e guerra, que são ferramentas de desentortar homens. Não é a mente do sofredor que de imediato procura o caminho certo. Não! O resultado do sacrifício é assimilado pela mente coletiva, essa consciência cósmica que arquiva o aperfeiçoamento resultante de toda experiência, para poder transmitir esse legado às futuras gerações. O propósito não é recuperar o fruto já comprometido, mas proteger a semente.

3 comentários:

  1. >Um Ser caminhando para a evolução.
    >A inteligência que nos concebeu (o Grande Arquiteto do
    >Universo ou a Energia Cósmica,como queira),enviou-nos
    >a Fada Madrinha.E o boneco se fez Ser pensante.
    >Mas o pinócchio enquanto se deixar levar pela raposa e
    >pelo gato e não se conscientizar que ele é o Navio e
    >não o Porto,sua característica de animal racional,
    >o Homo Sapiens,prevalece.
    >Somente quanto superar_se,terá galgado portanto, mais um
    >degrau na escala evolutiva.Aí,sim.A humanidade será
    >próspera sem necessidade das gerações passarem pelo
    >caos relatado,podendo portanto, proteger a semente.
    >E quem sabe, ordenar, que a montanha se desloque para
    >outro local e esta se deslocará?Só a Energia Cósmica
    >pode responder.

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  2. Somente quando superar_se,terá...

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    1. Me impressiona mesmo, sua capacidade de interpretação de textos. Você bate certinho, em cima de tudo, moça. Isso não é fácil! Me sinto honrado, em constatar que tenho uma amiga como você, caríssima Branca.

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