O sorriso do Poeta.

- De como a filosofia vê a poesia e o mito -

No Homem, todo vislumbre onírico está sujeito à vigília dos deuses, com surpreendente exceção da poesia. Só o poeta está livre. Os deuses vêem a poesia e o riso como únicas flechas humanas capazes de atingi-los. Em sua divina abstração, eles não aceitam o estado etéreo dos espíritos livres, visto que esse estado se assemelha ao abstrato.

Subtraindo calor do plasma primordial, os deuses solidificam os seres etéreos; e a cada porção dessa matéria amorfa, corresponderão os corpos cuja tangibilidade os torna manipuláveis pelos deuses. Se quereis atingir um ser etéreo, fazei-o enquanto ele permeia um corpo vivo, pois é na vulnerabilidade do vivente que a vida se deixa afetar.

Por meio dessa semeadura de vida em corpos físicos os deuses logram colher obediência, visto que enquanto materializada no corpo tangível a Vida tende a obedecer, e submete-se aos rigores da existência, vivenciando o que chamamos de destino, imposto implacavelmente pelos deuses.

Para angariar a cumplicidade do vivente no esforço de sustentação da vida, os deuses teriam concebido a juventude, a saúde, a beleza, a riqueza, a sabedoria e a disponibilidade do tempo. Mas os concedem tão sutilmente separados que tornam impossível obte-los simultaneamente, nessa quimera chamada felicidade. “Perder uma luva é uma dor profunda! Mas não se compara com a dor pungente, de se perder uma luva, jogar a outra fora, e achar a primeira novamente”. É justamente a essa intangibilidade da felicidade que Sileno se refere quando defrontado por Midas:

A mitologia, antecessora do conhecimento científico, propunha uma conclusão para cada dilema; e para explicar o conflito paradoxal daquele que nada tem, por querer tudo que pode, teria engendrado o mito do rei Midas, aquele alquimista mor que transformava em ouro tudo que tocava.

Por não saber como tirar felicidade de seu dom, o rei resolveu consultar o sábio deus silvestre Sileno, preceptor do deus Dioniso e mentor de deuses, reis e heróis. Midas já sabia que devido à importância de Sileno enquanto consultor, a duração de sua breve aparição era sempre proporcional ao nível de sabedoria do consulente.

Defrontado com o magnífico mentor, Midas indaga incontinente: Diga-me mestre, qual para o homem é o maior dos bens? De si para si, Sileno reflete rápido: - até Midas, esse que tudo tem, ainda procurando a felicidade? Resoluto, profere a terrível sentença: - “Ó raça de efêmeros farsantes; por que perguntais justamente o que não gostaríeis de ouvir? Então não sabeis que para o homem o maior dos bens é não ter nascido? Todavia, o segundo maior bem ainda podeis alcançar, no pronto perecer!”.

Mas Sileno, embora habituado a observar a soberana mão de ferro com que Zeus poderoso trata os mortais, não poderia avaliar a possibilidade de surgimento das "flores do mal": de tão manobrada pelos deuses plenipotentes no mister de impor seus desígnios, a alma humana teria assumido tal estado de plasticidade que lhe possibilita escapar por entre os dedos soberanos e, homericamente, impor aos deuses a problemática resolutiva dos dramáticos conflitos humanos.

É o que podemos observar quando o poeta consegue levar os deuses a compartilhar o nosso destino. No canto XVI da Ilíada, podemos ver como Zeus se aflige ao contemplar o destino trágico de Sarpédone: - “Pobre de mim! O Destino asselou que o mais caro dos homens, o meu Sarpédone, tombe hoje aos golpes de Pátroclo exímio. O coração, sinto agora, indeciso entre dois pensamentos: levá-lo-ei para longe da pugna lugente, e o coloco neste momento, com vida, entre o povo opulento dos Lícios, ou deixarei que do vigor lhe despoje o viril Menecíada?”.

Poderíamos tomar a poesia como uma ponte  entre as trevas da submissão e o fulgor da divindade? O poeta enquanto construtor de pontes fica sob a mira dos deuses e, como se para aplacar-lhes a fúria, tal o faz magistralmente Fernando Pessoa: "chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente".

Os deuses bem o sabem quão terrível é a missão que legaram aos humanos e, por isso mesmo, agraciaram-nos com a temerária arma do riso; tão perigoso que eles mesmos quase não o utilizam. A faculdade do riso, pertencente aos deuses e cedida somente aos humanos, condicionalmente; dependendo do critério de emprego, pode denotar nobreza como o faz o riso complacente ou solidário, ou torpeza como o faz o riso ignominioso.

Como os deuses não carecem de nobreza e repudiam a torpeza, embora tolerem que o poeta a eles se dirija por meio da poesia, não admitem que o ridente ouse apontar sua ínfima seta do riso contra o Olimpo, sob pena de ser fulminado pela hefésticaRelativo a Hefesto, o armeiro dos deuses. Ele fez o escudo de Zeus, arco e flecha de Apolo e a armadura de Aquiles. flecha argentaFeita de prata. de Apolo, o infalível arqueiro de Zeus.

Um comentário:

  1. O poeta é sutil,brinca,cria,vê o invisível,
    finge,como bem o diz,Fernando Pessoa,no seu ver-
    so,com tamanha sensibilidade:"chega a fingir que é dor,a dor que deveras sente".
    E,segundo Platão:"Todo homem é poeta quan
    do está apaixonado".
    É,nesse exato momento,que a "ponte-poesia" se estabelece.
    Somente ele,"o poeta",é capaz de lançar sua flecha e atingir,até então,a invulnerabilidade dos deuses.
    Assim, como Fernando Pessoa e tantos outros
    poetas;mencionarei aqui, a beleza poética da letra de Armando Louzada,"Fascinação",que sem
    dúvidas encantou os deuses também.
    "Os sonhos mais lindos sonhei
    De quimeras mil ,um castelo ergui
    E no teu olhar
    Tonto de emoção
    Com sofreguidão
    Mil venturas previ...
    É fascinação,amor".
    Mestre!Parabéns,pelo seu texto cheio de magia.

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